quinta-feira, 7 de abril de 2011

PRIMEVO

Por Solange Sólon Borges

Com carinho ilimitado, ao E.

Perdoa-me lembrar-vos porque quanto a mim não me perdôo a clarividência. Clarice Lispector

O perfume do tempo se desprende de tigelas fumegantes e comemoramos o sabor que nos espera. O fogo a tudo queima, prazeroso: legumes e ervas, indecisões e falhas. Purificação ancestral entre labaredas, onde há o etéreo e o primitivo: cascos de navios incendiados na catedral doméstica. Quando você chega à cozinha espia, alegando caça ao vinho tinto predileto e eu levito com suas excitadas delicadezas.

Meu amado constata que tudo cheira “bom” e vasculha minha pele a comparar aromas. Somos animais da pedra lascada e farejamos o reconhecimento. Zomba do meu cardápio vegetariano — macarrão com manjericão à deriva, pimentões vermelhos assados, rúcula e frutinhas cortadas em formato de estrela — pois jamais permitirei que se assole qualquer dor. No ponto, o arroz com lentilha, a mjadra que vovó ensinou, para que a prosperidade entre pela porta da frente e talvez eu descubra a que claridade afinal nós dois pertencemos.

Como posso sentir tamanha felicidade com afazeres tão banais? A luz filtrada por amplas janelas de vidro aquece o dia e nos abençoa, enquanto o fogo faz seu trabalho mítico e antigas árvores me ancoram lá fora. Pássaros cantam alegres. Os cães brincam. Minha devoção tem um peso inexplicável e quero ofertar ao meu amado apenas cortesias.

Do terraço, você pergunta se está pronto — sua voz segura inunda toda a casa — e eu respondo que sim. Sempre lhe direi sim. Estou pronta! Há uma ceia que nos chama e assim, encontrados, prepararemos a colheita com total simplicidade.

Nesse estatuto do amor, há fartura de palavras e volúpias. Então, naufraga a ponta do dedo na taça do vinho e molha meus lábios. Sou batizada. Então me beija e vê sobre a alva toalha os figos partidos lado a lado como vulvas e gargalha.

As estações em nós podem seguir agora repletas de paz.