quinta-feira, 5 de maio de 2011

BLUES

Por Solange Sólon Borges

Não sei fingir que amo pouco quando em mim ama tudo.
Vergílio Ferreira


Recebo sua imagem envolta em azul.

Mergulho onde se escondem asas,virações, horizontes que me aguardam.
O azul profundo da noite a tudo oculta sob sua pele bárbara: percebo o quanto ilumina,oscilando entre o que pulsa e emociona,entre o que nomeio divino e estilhaço,
entre o que mostra e revela:a rosa em formação.

Original: o estranho jogo de sílabas embaralhadas para que tudo tenha sentido
e precisão diante dos destroços. As palavras como testemunha.

Sua foto está lá, imutável,sem fissuras, corrosões, devastações, pressas, ervas daninhas, enquadrada para a eternidade,disciplinada pela beleza. Sol encarcerado. Rios de luz na imobilidade, semblante desfocado de anjo. Na contraluz não se vê
a aparição subterrânea do que há em mim: códigos intraduzíveis da fúria
e o útero dos relâmpagos.

A vida tem urgências... as noites queimam incontroláveis de amor.
O que temo? O desconhecido?
A profundidade dos abismos e seus alicerces corroídos?
Onde a arquitetura da paz?
A administração do caos?
É preciso que tudo doa menos. Tenho necessidades medievais
diante do peso total de um céu desesperado. Minhas pequeninas coisas do coração:
sonhos pisados, o amor que esperei e nunca veio...

Será que alguém ainda consegue me fazer algum mal depois de tudo o que vivi?

A circularidade do que é humano: o mecanismo da vida que leva
a todos para tão longe e depois os traz para tão perto em sua sincronicidade perfeita.

Por isso, seu olhar é azul e meu silêncio, blues.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

PRIMEVO

Por Solange Sólon Borges

Com carinho ilimitado, ao E.

Perdoa-me lembrar-vos porque quanto a mim não me perdôo a clarividência. Clarice Lispector

O perfume do tempo se desprende de tigelas fumegantes e comemoramos o sabor que nos espera. O fogo a tudo queima, prazeroso: legumes e ervas, indecisões e falhas. Purificação ancestral entre labaredas, onde há o etéreo e o primitivo: cascos de navios incendiados na catedral doméstica. Quando você chega à cozinha espia, alegando caça ao vinho tinto predileto e eu levito com suas excitadas delicadezas.

Meu amado constata que tudo cheira “bom” e vasculha minha pele a comparar aromas. Somos animais da pedra lascada e farejamos o reconhecimento. Zomba do meu cardápio vegetariano — macarrão com manjericão à deriva, pimentões vermelhos assados, rúcula e frutinhas cortadas em formato de estrela — pois jamais permitirei que se assole qualquer dor. No ponto, o arroz com lentilha, a mjadra que vovó ensinou, para que a prosperidade entre pela porta da frente e talvez eu descubra a que claridade afinal nós dois pertencemos.

Como posso sentir tamanha felicidade com afazeres tão banais? A luz filtrada por amplas janelas de vidro aquece o dia e nos abençoa, enquanto o fogo faz seu trabalho mítico e antigas árvores me ancoram lá fora. Pássaros cantam alegres. Os cães brincam. Minha devoção tem um peso inexplicável e quero ofertar ao meu amado apenas cortesias.

Do terraço, você pergunta se está pronto — sua voz segura inunda toda a casa — e eu respondo que sim. Sempre lhe direi sim. Estou pronta! Há uma ceia que nos chama e assim, encontrados, prepararemos a colheita com total simplicidade.

Nesse estatuto do amor, há fartura de palavras e volúpias. Então, naufraga a ponta do dedo na taça do vinho e molha meus lábios. Sou batizada. Então me beija e vê sobre a alva toalha os figos partidos lado a lado como vulvas e gargalha.

As estações em nós podem seguir agora repletas de paz.

sábado, 12 de março de 2011

TORMENTA

Por Solange Sólon Borges

Ninguém crê que tudo se incendeia habilmente, depois de
sermos batidos pelo temporal. Há a necessária compensação
de forças entre amores - luxúria, urgências, cobiça e fé -
corpos desnudos com seus desejos encarcerados para que as
muralhas cedam, afinal. E eles querem partir, eles querem
partir dos corpos celestes, mas não podem:
há o homem e há a fera.
Chegam os ferreiros batendo estacas sobre o peito:
miasmas inundam os dias. O coração se reveste em pátina. O
amor é premente e peço as sementes: comem o figo.
Encontro vestígios de magma em minha pele bárbara.
São os pormenores da tormenta: sua face se dissolve na
lembrança e peço uma foto como se lhe pedisse qualquer
rosto ou mesmo alma. A ausência ressuscita Pan em meio
ao pânico. Mostrou-me o tango de seu corpo bailando sobre o
meu no momento da submersão.
Tenho cios crônicos.
Ata-me onde encontrar a fera e imagine a minha total
fragilidade em seu retorno.